Agalopado (Alceu Valença)
Quando eu canto o seu coração se abala
Pois eu sou porta-voz da incoerência
Desprezando seu gesto de clemência
Sei que meu pensamento lhe atrapalha
Certo o sol seu cavalo de batalha
E faço a lua brilhar no meio-dia
Tempestade eu transformo em calmaria
E dou um beijo no fio da navalha
Pra dançar e cair nas suas garras
Gargalhando e sorrindo de agonia
Mas se acaso eu chorar não se espante
O meu riso e o meu choro não têm planos
Eu canto a dor, o amor, o desengano
A tristeza infinita dos amantes
Dom Quixote liberto de Cervantes
Descobri que os moinhos são reais
Entre feras, corujas e chacais
Viro pedra no meio do caminho
Viro rosa, vereda de espinhos
Incendeio esses tempos glaciais
Não Diga Num Blues (Zé Alexandre e Mongol)
Não diga num blues
Que a terra é redonda e o mundo pode rodar
Não diga num blues
Que a chuva molha e que o fogo pode queimar
Não venha dizer num blues
Que a aura é branca e a alma é negra, pode parar!
Não diga num blues
Que a fruta quase podre um dia vai melhorar
Só diga num blues
Que eu canto e canto só pelo prazer de cantar
A vida sopra num blues
Aquilo que o blues na vida deixa soprar
Blues não é privilégio de quem já sofreu
Hoje sofrer não é mais privilégio de ninguém
Não tente entender a lógica do blues
O blues é a negação da lógica que o blues não tem
A lógica que o blues não tem, a lógica que o blues não tem
Não diga, não diga, não diga num blues
A Loucura Amarela (Oswaldo Montenegro)
Na Primeira Manhã (Alceu Valença)
Na primeira manhã que te perdi
Acordei mais cansado que sozinho
Como um conde falando aos passarinhos
Como um bumba-meu-boi sem capitão
E gemi como geme o arvoredo
Como a brisa descendo da colina
Como quem perde o prumo e desatina
Como um boi no meio da multidão
Solidão
Na segunda manhã que te perdi
Era tarde demais pra ser sozinho
Cruzei ruas, estradas e caminhos
Como um carro correndo em contramão
Pelo canto da boca num sussurro
Fiz um canto demente, absurdo
O lamento noturno dos viúvos
Como um gato gemendo no porão
Solidão
A Palo Seco (Belchior)
Se você vier me perguntar por onde andei
No tempo em que você sonhava
De olhos abertos lhe direi
Amigo eu me desesperava
Sei que assim falando pensas
Esse desespero é moda em 76
Eu ando um pouco descontente
Desesperadamente eu grito em português
Ando um pouco descontente
Desesperadamente eu grito em português
Tenho vinte e cinco anos
De sonho e de sangue
E de América do Sul
Por força desse destino
Um tango argentino
Me cai bem melhor que um blues
Sei que assim falando pensas
Esse desespero é moda em 76
Eu quero é que esse canto torto feito faca
Corte a carne de vocês
Hora do Almoço (Belchior)
No centro da sala diante da mesa
No fundo do prato comida e tristeza
A gente se olha, se toca e se cala
Mas se desentende no instante em que fala
Medo, medo, medo, medo, medo, medo
Cada um guarda mais o seu segredo
A sua mão fechada, a sua boca aberta
O seu peito deserto, sua mão parada
Selada, lacrada, molhada de medo
Pai na cabeceira, é hora do almoço!
Minha mãe me chama, é hora do almoço!
Minha irmã mais nova, negra cabeleira
Minha avó reclama, é hora do almoço!
Moço, moço, moço, moço, moço, moço
E eu ainda sou bem moço pra tanta tristeza
Deixemos de coisa e cuidemos da vida
Senão chega a morte ou coisa parecida
E nos arrasta moço sem ter visto a vida
Ou coisa parecida, ou coisa parecida
Ou coisa parecida, Aparecida
(inserção vinheta “Partido Alto” de Chico Buarque de Holanda)
Diz que deu, diz que dá, diz que Deus dará
Não vou duvidar, ô nega!
E se Deus negar?
Eu vou me indignar e chegar
É hora do almoço!
A Moça e o Povo (Alceu Valença) – vinheta
Havia a moça na tarde
De besta, me comovia
Tão linda com seu cachorro
E a noite mordia o dia
E a violenta Ipanema
Atropelando o poema
Que nunca mais eu faria
Ai, a solidão das capitais
É um não vou, não vens, não vais
Ela me olhava e não me via
Pavão Mysteriozo (Ednardo)
Pavão misterioso, pássaro formoso
Tudo é mistério nesse seu voar
Mas se eu corresse assim, tantos céus assim
Muita história eu tinha pra contar
Pavão misterioso nessa cauda aberta em leque
Me guarda moleque de eterno brincar
Me poupa do vexame de morrer tão moço
Muita coisa ainda quero olhar
Pavão misterioso, meu pássaro formoso
No escuro dessa noite, me ajuda a cantar
Derrama essas faíscas despeja esse trovão
Desmancha isso tudo que não é certo não
Pavão misterioso, pássaro formoso
Um conde raivoso não tarda a chegar
Não temas minha donzela, nossa sorte nessa guerra
Eles são muitos, mas não podem voar
Muito Romântico (Caetano Veloso)
Não tenho nada com isso, nem vem falar
Eu não consigo entender sua lógica
Minha palavra cantada pode espantar
E a seus ouvidos parecer exótica
Mas acontece que eu não posso me deixar
Levar por um papo que já não deu
Acho que nada ficou pra guardar ou lembrar
Do muito ou pouco que houve entre você e eu
Nenhuma força virá me fazer calar
Faço no tempo soar minha sílaba
Canto somente o que pede pra se cantar
Sou o que soa, eu não douro a pílula
Tudo o que eu quero é um acorde perfeito maior
Com todo o mundo podendo brilhar num cântico
Canto somente o que não pode mais se calar
Noutras palavras, sou muito romântico
Vapor Barato (Wally Salomão e Jards Macalé)
Oh, sim, eu estou tão cansado
Mas não pra dizer
Que eu não acredito mais em você
Com minhas calças vermelhas
Meu casaco de general
Cheio de aneis
Vou descendo por todas as ruas
E vou tomar aquele velho navio
Eu não preciso de muito dinheiro
E não me importa,
Oh, minha honey baby, baby
Honey baby
Oh, minha honey baby, baby
Oh, sim, eu estou tão cansado
Mas não pra dizer
Que eu tô indo embora
Talvez eu volte
Um dia eu volto, quem sabe?
Mas eu preciso esquecê-la, eu preciso
Oh, minha grande
Oh, minha pequena
Oh, minha grande obsessão
Oh, minha honey baby, honey baby
Honey baby, baby
Sinal Fechado (Paulinho da Viola)
Olá como vai?
Eu vou indo, e você, tudo bem?
Tudo bem, eu vou indo, correndo pegar meu lugar no futuro, e você?
Tudo bem, eu vou indo em busca ee um sono tranquilo, quem sabe?
Quanto tempo!
Pois é, quanto tempo!
Me perdoe a pressa, é a alma dos nossos negócios
Oh! Não tem de que. Eu também só ando a cem
Quando é que você telefona? Precisamos nos ver por aí
Pra semana, prometo, talvez nos vejamos... Quem sabe?
Quanto tempo!
Pois é, quanto tempo!
Tanta coisa que eu tinha a dizer, mas eu sumi na poeira das ruas
Eu também tenho algo a dizer, mas me foge à lembrança
Por favor, telefone, eu preciso beber alguma coisa rapidamente
Pra semana...
O sinal...
...eu procuro você
...vai abrir, vai abrir
Prometo, não esqueço
Por favor, não esqueça,
Adeus, adeus...
Adeus, adeus...
Geni e o Zepelin (Chico Buarque)
De tudo que é nego torto
Do mangue e do cais do porto
Ela já foi namorada
O seu corpo é dos errantes
Dos cegos, dos retirantes
É de quem não tem mais nada
Dá-se assim desde menina
Na garagem, na cantina
Atrás do tanque, no mato
É a rainha dos detentos
Das loucas, dos lazarentos
Dos moleques do internato
E também vai amiúde
Com os velhinhos sem saúde
E as viúvas sem porvir
Ela é um poço de bondade
E é por isso que a cidade
Vive sempre a repetir
Joga pedra na Geni!
Joga pedra na Geni!
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni!
Um dia surgiu, brilhante
Entre as nuvens, flutuante
Um enorme zepelim
Pairou sobre os edifícios
Abriu dois mil orifícios
Com dois mil canhões assim
A cidade apavorada
Se quedou paralisada
Pronta pra virar geleia
Mas do zepelim gigante
Desceu o seu comandante
Dizendo, “mudei de ideia”
“Quando vi nesta cidade
Tanto horror e iniquidade
Resolvi tudo explodir
Mas posso evitar o drama
Se aquela formosa dama
Esta noite me servir”
Essa dama era Geni!
Mas não pode ser Geni!
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni!
Mas de fato, logo ela
Tão coitada e tão singela
Cativara o forasteiro
O guerreiro tão vistoso
Tão temido e poderoso
Era dela, prisioneiro
Acontece que a donzela
(E isso era segredo dela)
Também tinha seus caprichos
E a deitar com homem tão nobre
Tão cheirando a brilho e a cobre
Preferia amar com os bichos
Ao ouvir tal heresia
A cidade em romaria
Foi beijar a sua mão
O prefeito de joelhos
O bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão
Vai com ele, vai Geni!
Vai com ele, vai Geni!
Você pode nos salvar
Você vai nos redimir
Você dá pra qualquer um
Bendita Geni!
Foram tantos os pedidos
Tão sinceros, tão sentidos
Que ela dominou seu asco
Nessa noite lancinante
Entregou-se a tal amante
Como quem dá-se ao carrasco
Ele fez tanta sujeira
Lambuzou-se a noite inteira
Até ficar saciado
E nem bem amanhecia
Partiu numa nuvem fria
Com seu zepelim prateado
Num suspiro aliviado
Ela se virou de lado
E tentou até sorrir
Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir
Joga pedra na Geni!
Joga bosta na Geni!
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni!
Deus Lhe Pague (Chico Buarque de Holanda)
Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague
Pelo prazer de chorar e pelo "estamos aí"
Pela piada no bar e o futebol pra aplaudir
Um crime pra comentar e um samba pra distrair
Deus lhe pague
Por essa praia, essa saia, pelas mulheres daqui
O amor mal feito depressa, fazer a barba e partir
Pelo domingo que é lindo, novela, missa e gibi
Deus lhe pague
Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair
Deus lhe pague
Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir
Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir
E pelo grito demente que nos ajuda a fugir
Deus lhe pague
Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas-bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague
Canalha (Walter Franco)
É uma dor canalha
Que te dilacera
É um grito que se espalha
Também pudera
Não tarda nem falha
Apenas te espera
Num campo de batalha
É um grito que se espalha
É uma dor
Canalha
Quebra-Cabeça (Paulinho Soares e Marcello Silva)
Faça o jogo da memória
Contando toda sua história
Todos querem ouvir
Você tem muito a dizer
É importante crer
No que você sonhou um dia
Não importa quando
E não importa mesmo
Como você descobriu
Que o mundo é somente
Um quebra cabeça
Quebra cabeça, quebra cabeça
Siga, continue rindo
Seu mundo lindo construindo
Não se desespere
Existe um mundo coerente
Que você pressente
No riso puro da criança
No beijo do amante
E na procura incessante
Da verdade sua
E que ninguém lhe roubará
Não esmoreça
Não esmoreça, não
Quebra Cabeça, quebra Cabeça
Lua e Flor (Oswaldo Montenegro)
Eu amava como amava algum cantor
De qualquer clichê de cabaré, de lua e flor
E sonhava como a feia na vitrine
Como carta que se assine em vão
Eu amava como amava um sonhador
Sem saber por que e amava ter no coração
A certeza ventilada de poesia
De que o dia não amanhece, não
Eu amava como amava um pescador
Que se encanta mais com a rede que com o mar
Eu amava como jamais poderia
Se soubesse como te contar
A Lista (Oswaldo Montenegro)
Faça uma lista de grandes amigos
Quem você mais via há dez anos atrás?
Quantos você ainda vê todo dia?
Quantos você já não encontra mais?
Faça uma lista dos sonhos que tinha
Quantos você desistiu de sonhar?
Quantos amores jurados pra sempre?
Quantos você conseguiu preservar?
Onde você ainda se reconhece
Na foto passada ou no espelho de agora?
Hoje é do jeito que achou que seria?
Quantos amigos você jogou fora?
Quantos mistérios que você sondava
Quantos você conseguiu entender?
Quantos segredos que você guardava
Hoje são bobos, ninguém quer saber?
Quantas mentiras você condenava?
Quantas você teve que cometer?
Quantos defeitos sanados com o tempo
Eram o melhor que havia em você?
Quantas canções que você não cantava
Hoje assovia pra sobreviver?
Quantas pessoas que você amava
Hoje acredita que amam você?
Bandolins (Oswaldo Montenegro)
Como fosse um par
Que nessa valsa triste
Se desenvolvesse ao som dos bandolins
E como não?
E por que não dizer
Que o mundo respirava mais
Se ela apertava assim seu colo?
E como se não fosse um tempo
Em que já fosse impróprio se dançar assim
Ela teimou e enfrentou o mundo
Se rodopiando ao som dos bandolins
Como fosse um lar
Seu corpo a valsa triste iluminava
E a noite caminhava assim
E como um par
O vento e a madrugada
Iluminavam a fada do meu botequim
Valsando como valsa uma criança
Que entra na roda
A noite tá no fim
Ela valsando só na madrugada
Se julgando amada ao som dos bandolins
Metade (Oswaldo Montenegro)
Que a força do medo que tenho não me impeça de ver o que anseio
Que a morte de tudo em que acredito não me tape os ouvidos e a boca
Porque metade de mim é o que eu grito, a outra metade é silêncio.
Que a música que ouço ao longe seja linda, ainda que tristeza
Que a mulher que amo seja pra sempre amada, mesmo que distante
Porque metade de mim é partida, a outra metade é saudade.
Que as palavras que falo não sejam ouvidas como prece, nem repetidas com fervor
Apenas respeitadas
Como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimentos
Porque metade de mim é o que ouço, a outra metade é o que calo.
Que a minha vontade de ir embora se transforme na calma e na paz que mereço
Que a tensão que me corrói por dentro seja um dia recompensada
Porque metade de mim é o que penso, a outra metade é um vulcão.
Que o medo da solidão se afaste
E o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável
Que o espelho reflita em meu rosto um doce sorriso que me lembro ter dado na infância
Porque metade de mim é a lembrança do que fui, a outra metade eu não sei.
Que não seja preciso mais do que uma simples alegria pra me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio me fale cada vez mais
Porque metade de mim é abrigo, a outra metade é cansaço.
Que a arte nos aponte uma resposta, mesmo que ela não saiba
E que ninguém a tente complicar, porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
Porque metade de mim é plateia, a outra metade é canção.
E que a minha loucura seja perdoada
Porque metade de mim é amor e a outra metade também
Vamos Celebrar (Oswaldo Montenegro)
Eu gosto de andar pela rua, bater papo, de lua
E de amigo engraçado
Eu gosto do estilo do Zorro
O visual lá do morro e de abraço apertado
Eu gosto mais de bicho com asa
Mais de ficar em casa e mais de tênis usado
Eu gosto do volume, do perfume
Do ciúme, do desvelo e do cabelo enrolado
Eu gosto de artistas diversos
De criança de berço e do som do atchim
Eu gosto de trem fora do trilho
E de andar com meu filho e da cor do marfim
Tem gente, muita gente que eu gosto
Que eu quase aposto que não gosta de mim
Eu gosto é de cantar
Vamos celebrar, vamos celebrar
Eu gosto de artista circense
De artista que pense, de artista voraz
Eu gosto de olhar para frente
Mas de amar para sempre o que fica pra trás
Eu gosto de quem sempre acredita
A violência é maldita e já foi longe demais
Eu gosto do repique, do atabaque
Do alambique, badulaque, do cachimbo da paz
Eu gosto de inventar melodia
Da palavra poesia e de palavra com til
Eu gosto é de beijo na boca
De cantora bem rouca e de morar no Brasil
Eu gosto assim do canto do povo
E de tudo que é novo e do que a gente já viu
Eu gosto é de cantar
Vamos celebrar, vamos celebrar
Eu gosto dos atores que choram ali por nós
E namoram ali por nós, na TV
Eu gosto assim de quem é eterno
E de quem é moderno e de quem não quer ser
Eu gosto de varar madrugada
E de quem conta piada e não consegue entender
Eu gosto da risada, gargalhada
Da beleza recriada pra que eu possa rever
Eu gosto de quem quer dar ajuda
E acredita que muda o que não anda legal
Eu gosto de quem grita no morro
Que a alegria é socorro e que miséria é fatal
Eu gosto do começo, do avesso
Do tropeço, do bebum que dança no carnaval
Eu gosto é de cantar
Vamos celebrar, vamos celebrar
Eu gosto é de ver coisa rara
A verdade na cara é do que gosto mais
Eu gosto porque assim vale a pena
A nossa vida é pequena e tá guardada em cristais
Eu gosto é que Deus cante em tudo
E que não fique mudo, morto em mil catedrais
Eu gosto é de cantar
Vamos celebrar, vamos celebrar